sexta-feira, 25 de março de 2016

Socialismo de Estado e Anarquismo: Até onde concordam e em que diferem


                                                                               

                                                                          






(Tradução por Erick Vasconcelos; Link:https://c4ss.org/content/25629)


Provavelmente nenhuma agitação já alcançou a magnitude, tanto em número de adeptos quanto em área de influência, que foi conseguida pelo moderno socialismo, e ao mesmo tempo em que tenha sido tão pouco entendida e tão mal compreendida, não apenas pelos hostis e indiferentes, mas por simpatizantes e até mesmo pela grande massa de seus próprios defensores. Esse infeliz e altamente perigoso estado de coisas se deve em parte ao fato de que os relacionamentos humanos que este movimento — se é que algo tão caótico se pode chamar de movimento — pretende transformar não são específicos a classes, mas são pertinentes literalmente toda a humanidade; parte se deve ao fato de que esses relacionamentos são infinitamente mais variados e complexos em suas naturezas do que aqueles que tenham sido reformulados por tentativas reformadoras anteriores; e parte se deve ao fato de que as grandes forças transformadoras da sociedade, os canais de informação e esclarecimento, estão quase que exclusivamente sob o controle daqueles cujos imediatos interesses pecuniários são antagônicos à reivindicação central do socialismo de que o trabalho deve ter a posse do que lhe é devido.

Talvez as únicas pessoas que se pode dizer que compreendam aproximadamente o significado, os princípios e os propósitos do socialismo são os líderes das alas extremas das forças socialistas e talvez uma minoria dos próprios barões do dinheiro. Trata-se do assunto da moda para o pastor, o professor e o jornalista, e na maior parte das vezes um trabalho lastimável é executado, excitando o escárnio e a condescendência daqueles que são competentes para julgar. Que os mais importantes nas divisões intermediárias do socialismo não compreendam o que defendem é evidente pelas posições que ocupam. Se compreendessem, se fossem pensadores consistentes, lógicos — se fossem o que os franceses chamam de homem consequente —, suas faculdades analíticas já os teriam levado a um extremo ou outro.

Pois é um fato curioso de que os dois extremos do vasto exército ora considerado, embora unidos, como se insinuou anteriormente, pela reivindicação comum de que o trabalho deve possuir o que lhe é de direito, estão mais diametralmente opostos um ao outro em seus princípios fundamentais de ação social e em seus métodos de alcançar os fins almejados do que o inimigo comum entre eles — a sociedade existente. Eles se baseiam em dois princípios, cujo conflito ao longo da história é quase idêntico à própria história do mundo desde que o homem passou a habitá-lo; e todos os partidos intermediários, incluindo aquele dos que apoiam a sociedade existente, são baseados em concessões entre tais princípios. Está claro, portanto, que qualquer oposição inteligente e radical à ordem que prevalece precisa advir de um desses extremos, pois qualquer mudança advinda de outra fonte, longe de ser revolucionária em caráter, só pode ser uma modificação superficial que, em última análise, seria incapaz de concentrar em si o grau de atenção e de interesse agora dispensado ao moderno socialismo.

Os dois princípios referidos são a autoridade e a liberdade, e os nomes das duas escolas de pensamento socialista que representam completamente uma ou outra são, respectivamente, o socialismo de estado e o anarquismo. Aquele que souber o que essas duas escolas almejam e quais os meios que defendem entende o movimento socialista. Pois, como acabou de ser dito que não há meio termo entre Roma e a razão, então deve-se dizer que não há meio termo entre o socialismo de estado e o anarquismo. Há, na verdade, duas correntes que fluem do núcleo das forças socialistas e se concentram na esquerda e na direita; e, se o socialismo vier a prevalecer, é uma das possibilidades que, após esse movimento de separação tenha sido completado e a ordem existente tenha sido destruída entre os dois campos, o conflito final mais amargo ainda virá. Nesse caso, todos aqueles que fazem parte do movimento pelas jornada de oito horas (1), todos os sindicalistas, todos Cavaleiros do Trabalho (2), todos os defensores da nacionalização das terras, todos os greenbackers (3) e, em suma, todos os membros dos diferentes batalhões pertencentes ao grande exército de trabalhadores, terão desertado seus antigos postos e, uns dispostos de um lado e outros do outro, travarão a grande batalha. Pretendo explicar brevemente neste artigo o que representaria uma vitória dos socialistas de estado e uma vitória dos anarquistas.

Para fazer isso de forma inteligente, contudo, eu preciso primeiro descrever a base comum dos dois, as características que fazem com que ambos sejam socialistas.
Os princípios econômicos do moderno socialismo são uma dedução lógica do princípio apresentado por Adam Smith em A Riqueza das Nações — a saber, de que o trabalho é a medida verdadeira do preço. Mas Adam Smith, após afirmar esse princípio de forma clara e concisa, imediatamente abandonou toda consideração posterior para dedicar-se a mostrar o que realmente mede o preço e como, portanto, a riqueza é distribuída no presente. Desde sua época, quase todos os economistas políticos seguiram seu exemplo ao se limitarem à função de descrever a sociedade como ela é, em suas fases industrial e comercial. O socialismo, ao contrário, estende sua função à descrição da sociedade como ela deveria ser e à descoberta dos meios de chegar a esse objetivo. Meio século ou mais depois de Smith ter enunciado o princípio supracitado, o socialismo o apanhou e o levou até suas conclusões lógicas, tornando-o a base de uma nova filosofia econômica.
Isso parece ter sido feito independentemente por três homens diferentes, de três diferentes nacionalidades, em três diferentes idiomas: Josiah Warren, um americano; Pierre J. Proudhon, um francês; e Karl Marx, um alemão de origem judaica. Que Warren e Proudhon tenham chegado a suas conclusões sozinhos e sem auxílio é certo; mas é questionável se Marx não tenha sido inspirado por Proudhon em suas idéias econômicas. De qualquer maneira, a representação de Marx dessas ideias foi peculiar em tantos aspectos que ele justamente pode receber o crédito da originalidade. Que o trabalho desse interessante trio tenha sido feito quase que simultaneamente parece indicar que o socialismo estava no ar e que o tempo era propício e as condições eram favoráveis ao surgimento dessa nova escola de pensamento. Em relação a quem teria sido o primeiro a originar a ideia, o crédito deve pertencer a Warren, o americano — fato que deveria ser notado pelos estúpidos oradores que se aprazem em atacar o socialismo como doutrina importada. (4) Do mais puro sangue revolucionário, este Warren descende do Warren que caiu em Bunker Hill. (5)

Do princípio de Smith de que o trabalho é a verdadeira medida do preço — ou, como dito por Warren, que o custo é o limite do preço — esses três homens fizeram as seguintes deduções: que a remuneração natural do trabalho é o seu produto; que essa remuneração, ou produto, é a única fonte justa de rendimentos (ignorando, é claro, presentes, heranças etc); que todos aqueles que derivam suas riquezas de qualquer outra fonte as extraem direta ou indiretamente da remuneração justa e natural do trabalho; que esse processo de extração geralmente toma três formas — juro, renda e lucro; que esses três constituem a trindade da usura e são simplesmente diferentes métodos de arrecadar tributos pelo uso do capital; que o capital, sendo apenas trabalho armazenado que já foi remunerado em sua totalidade, deve ser de uso gratuito, sob o princípio de que o trabalho é a única base do preço; que o credor de capital tem direito ao seu retorno intacto e nada mais; que a única razão pela qual o banqueiro, o acionista, o senhorio, o manufatureiro e o mercador são capazes de extrair usura do trabalho se deve ao fato de que são sustentados por privilégios legais — ou monopólios; e que a única forma de garantir que o trabalho usufrua de seu produto total, ou de sua remuneração natural, é acabar com o monopólio.
Não se deve inferir que Warren, Proudhon ou Marx usaram estas exatas palavras, ou que seguiram exatamente essa linha de pensamento, mas o que foi aqui descrito indica definitivamente o fundamento comum usado pelos três e seus pensamentos substanciais até o limite em que estão de acordo. E, a não ser que eu seja acusado de reproduzir as posições e argumentos desses homens incorretamente, deve-se dizer em antecipação que eu os citei de forma geral e que, para o propósito de empreender contrastes e comparações agudas, vívidas e enfáticas, eu tomei considerável liberdade com seus pensamentos ao rearranjá-los em ordem e formulação próprias, mas creio tê-lo feito sem representá-los incorretamente em qualquer particular essencial.
Foi neste ponto — na necessidade de se acabar com o monopólio — que seus caminhos divergiram. Aqui a estrada se dividiu. Eles perceberam que precisavam virar à direita ou à esquerda — seguir o caminho da autoridade ou o caminho da liberdade. Marx foi por um lado; Warren e Proudhon, por outro. Assim nasciam o socialismo de estado e o anarquismo.

Primeiro, então, o socialismo de estado, o qual pode ser descrito como a doutrina de que todas as relações humanas devem ser gerenciadas pelo governo, sem levar em consideração a escolha individual. Marx, seu fundador, concluiu que a única forma de abolir os monopólios de classe era com a centralização e consolidação de todos os interesses comerciais e industriais, todas as agências produtivas e distributivas, em um vasto monopólio estatal. O governo deve se tornar banqueiro, manufatureiro, fazendeiro, carregador e mercador, e nessas funções não deve sofrer competição. A terra, as ferramentas e todos os instrumentos de produção devem ser retirados das mãos individuais e passarem a ser propriedade coletiva. O indivíduo só pode possuir os produtos a serem consumidos, não os meios de produzi-los. O homem só pode ter propriedade de suas roupas e de sua comida, mas não da máquina de costura que faz suas camisas ou da pá com a qual colhe suas batatas. O produto e o capital são coisas essencialmente diferentes; o primeiro pertence ao indivíduo, o último à sociedade. A sociedade deve se apoderar do capital que lhe pertence pela urna se puder, pela revolução se precisar. Uma vez de posse do capital, a sociedade precisa administrá-lo sob o princípio da maioria, através de seu órgão, o Estado, utilizá-lo na produção e na distribuição, fixar todos os preços de acordo com a quantidade de trabalho usada em sua criação e empregar todas as pessoas em oficinas, fazendas, armazéns etc. O país precisa ser transformado numa grande burocracia e todo indivíduo seria um funcionário do estado. Tudo precisa ser feito de acordo com o princípio do custo, e as pessoas não teriam quaisquer motivos para lucrar individualmente. Os indivíduos, sem a possibilidade possuir capital, não podem empregar uns os outros e nem empregar a si próprio. Todo homem deve ser um assalariado e o estado o único empregador. Aquele que não trabalha para o estado deve morrer de fome ou, provavelmente, ir para a prisão. Toda a liberdade de comércio precisa desaparecer. A competição precisa desaparecer totalmente. Toda atividade industrial e comercial precisa ser centrada num vasto, enorme, totalizante monopólio. O remédio para os monopólios é o monopólio.

Esse é o programa do socialismo de estado, como adotado por Karl Marx. A história de seu crescimento e progresso não pode ser contada aqui. Neste país, os grupos que o defendem são conhecidos como Partido Socialista Trabalhista, que pretende seguir Karl Marx; os nacionalistas, que seguem Karl Marx filtrado por Edward Bellamy; e os socialistas cristãos, que seguem Karl Marx filtrado por Jesus Cristo. (6)

As outras aplicações do princípio da autoridade, uma vez adotado na esfera econômica, são evidentes. Sua adoção significa o absoluto controle pela maioria de todas as condutas individuais. O direito a tal controle é admitido pelos socialistas de estado, embora eles mantenham que, na verdade, ao indivíduo seria dada uma liberdade muito maior do que atualmente. Mas essa liberdade seria apenas permitida ao indivíduo; ele não poderia reclamá-la para si. A sociedade não seria fundamentada na garantia igualitária da maior liberdade possível. Tal liberdade, se existisse, poderia ser tomada a qualquer momento. Garantias constitucionais não teriam nenhuma serventia. Haveria apenas um artigo na constituição de um país socialista de estado: “O direito da maioria é absoluto”.
O argumento dos socialistas de estado de que esse direito não seria exercido nas questões privadas mais íntimas ao indivíduo não é sustentado pela história dos governos. A tendência do poder é de sempre aumentar, de estender sua esfera de influência, de se cruzar os limites estabelecidos para si; onde o hábito de resistir a essa tendência não é incentivado, e onde ao individuo não se ensina o zelo por seus direitos, a individualidade gradualmente desaparece e o governo ou o estado se tornam totais. O controle naturalmente acompanha responsabilidades. Sob o sistema do socialismo de estado, portanto, em que a comunidade é responsável pela saúde, riqueza e sabedoria do indivíduo, é evidente que a comunidade, através da expressão de sua maioria, insistirá mais e mais em prescrever as condições de saúde, riqueza e sabedoria, e assim enfraqueceria e acabaria por destruir a independência individual e, com ela, todo o senso de responsabilidade do indivíduo.

Não importa o que disserem os socialistas de estado, o fato é que seu sistema, se adotado, está fadado a criar uma religião estatal, ao qual todos deverão contribuir e no altar do qual todos deverão se ajoelhar; uma escola estatal de medicina, onde os doentes deverão invariavelmente ser tratados; um sistema estatal de higiene, que prescreverá o que todos podem ou não comer, beber, vestir e fazer; um código estatal de moral, que não se contentará em punir crimes, mas proibirá o que a maioria decidir ser um vício; um sistema estatal de educação, que acabará com todas as escolas, academias e faculdades privadas; um berçário estatal, no qual todas as crianças devem crescer juntas às custas do povo; e, finalmente, uma família estatal, moldada numa tentativa de estirpicultura, ou procriação científica, em que nenhum homem ou mulher poderá ter filhos se o estado os proibir e nenhum homem ou mulher poderá se recusar a ter filhos se o Estado assim ordenar. Assim a autoridade chegará ao seu apogeu e o monopólio terá seu poder máximo.
Tal é o ideal lógico do estado socialista, tal é o objetivo que se encontra no fim do caminho que Karl Marx escolheu. Permita que nós sigamos agora os auspícios de Warren e Proudhon, que tomaram o outro caminho — o caminho da liberdade.
Isso nos traz ao anarquismo, que pode ser descrito como a doutrina de que todas as relações humanas devem ser gerenciadas pelos indivíduos ou por associações voluntárias e de que o estado deve ser abolido.

Quando Warren e Proudhon, em sua luta pela justiça para os trabalhadores, se depararam com o obstáculo dos monopólios de classe, eles observaram que esses monopólios eram sustentados pela autoridade e concluíram que a coisa a ser feita não era fortalecer essa autoridade e assim tornar o monopólio universal, mas extirpá-lo totalmente e assim brandir o princípio oposto — a liberdade —, tornando a competição, a antítese do monopólio, universal. Eles viam na competição o grande nivelador dos preços ao custo do trabalho. Nisso concordavam com os economistas políticos. A pergunta que então se apresentou era: por que os preços não caíam ao custo do trabalho? Por que existem rendimentos adquiridos sem o emprego do trabalho? Em suma, por que o usurário — recipiente de juros, rendas e lucros — existe? A resposta era encontrada unilateralidade da competição atualmente. Descobriu-se que o capital havia manipulado a legislação de tal forma que a competição ilimitada só era permitida na oferta de trabalho produtivo, mantendo assim os salários em níveis de fome ou próximos; que se permite um alto grau de competitividade na oferta de serviços de distribuição das classes mercantis, fazendo com que seus lucros — não os preços dos bens — se aproximem dos salários justos de seu trabalho; mas que não há quase nenhuma competição na oferta de capital, de que dependem tanto o trabalho produtivo quanto o distributivo, o que faz com que os juros sobre empréstimos, os aluguéis de imóveis e as rendas advindas da terra sejam tão altos quanto as pessoas consigam suportar.

Ao perceber esses fatos, Warren e Proudhon acusaram os economistas políticos de temerem as próprias doutrinas. Os homens de Manchester (7) foram acusados de inconsistência. Acreditavam na liberdade de competir com o trabalhador para reduzir salários, mas não na liberdade de competir com o capitalista para reduzir sua usura. Olaissez faire era ótimo para o trabalho, mas péssimo para o capital. Como, porém, corrigir essa incoerência? Como colocar o capital a serviço dos empresários e trabalhadores a preço de custo, ou seja, livre da usura? Esse era o problema.
Marx, como vimos, o resolveu afirmando que o capital era diferente do produto, que pertencia à sociedade, deveria ser tomado por ela e empregado para o benefício de todos. Proudhon zombava dessa distinção entre capital e produto. Ele afirmava que capital e produto não eram diferentes tipos de riqueza, mas simplesmente condições alternadas ou funções da mesma riqueza; que toda riqueza passa por uma incessante transformação, de capital até produto e de produto de volta para capital, em um processo interminável; que capital e produto são termos meramente sociais; que o que é produto para um pode imediatamente tornar-se capital para outro e vice versa; que se houver só uma pessoa no mundo, toda a riqueza seria para ele simultaneamente capital e produto; que o fruto do trabalho de A é seu produto, o qual, então, quando vendido para B, se torna o capital de B (a não ser que B seja um consumidor improdutivo, caso em que a riqueza é desperdiçada e que está fora do escopo da economia social); que uma máquina a vapor é um produto tanto quanto o é um casaco e que um casaco é capital tanto quanto uma máquina a vapor; e que as mesmas leis de equidade que governam a posse de um governam a posse do outro.
Por essas e outras razões, Proudhon e Warren eram incapazes de aprovar qualquer plano de tomada do capital pela sociedade. Mas, embora se opusessem à socialização da propriedade do capital, eles objetivavam socializar seus efeitos, tornando sua utilização benéfica a todos, não apenas um meio de empobrecer muitos para enriquecer poucos. Ao se darem conta desse fato, perceberam que isso atingido sujeitando o capital à lei natural da competição, fazendo com que o preço de sua utilização caísse ao nível de seu custo — isto é, somente ao preço dos gastos incidentais de manejo e transferência. Assim, Proudhon e Warren levantaram o estandarte do livre comércio absoluto; do livre comércio doméstico e do livre comércio com outros países; do resultado lógico da doutrina de Manchester, o laissez faire como a regra universal. Sob esse estandarte começaram sua luta contra os monopólios, sejam eles os monopólios totais dos socialistas de estado ou os vários monopólios de classe que ora vigoram. Dos últimos, eles distinguiram quatro de maior importância: o monopólio da moeda, da terra, das tarifas e das patentes.

O primeiro em importância por sua influência nefasta é o monopólio da moeda, que consiste no privilégio dado pelo governo a certos indivíduos — ou a indivíduos que possuem certos tipos de propriedade — de emitir meios circulantes, privilégio que agora é imposto neste país por um tributo nacional de dez por cento sobre todas as outras pessoas que tentem fornecer meios circulantes e por leis estaduais que criminalizam a emissão de notas como moeda. Afirma-se que os detentores desse privilégio controlam a taxa de juros, os preços dos aluguéis de casas e prédios e os preços dos demais bens — os juros de forma direta, os aluguéis e demais preços de forma indireta. Pois, dizem Proudhon e Warren, se a atividade bancária fosse aberta para a concorrência, mais e mais pessoas entrariam nesse ramo até que o preço dos empréstimos caísse ao ponto do custo do trabalho — que as estatísticas mostram ser menos de três quartos de um por cento. Nesse caso, as milhares de pessoas que estão agora impossibilitadas de entrar no mercado por conta das taxas absurdamente altas cobradas pelo capital para abrir seus negócios verão suas dificuldades desaparecerem. Se possuem propriedades que não desejam converter em dinheiro por meio da venda, um banco as tomará como garantias para um empréstimo de uma certa fração de seus valores de mercado com um desconto de menos de um por cento. Se não possuem propriedades mas são industriosas, honestas e capazes, em geral serão capazes de conseguir fiadores e empréstimos em termos favoráveis. Assim os juros cairão num só golpe. Os bancos realmente farão empréstimos capital, mas negócios com o capital de seus clientes. O negócio será uma troca do crédito bancário, conhecido e amplamente disponível, pelo crédito desconhecido, mas igualmente sólido, dos clientes, a um desconto de menos de um por cento — não como juro pelo uso do capital, mas como pagamento pelo trabalho desenvolvido pelo banco. Essa facilidade de se adquirir capital dará um ímpeto jamais visto aos negócios e, consequentemente, criará uma demanda sem precedentes por trabalhadores — uma demanda que sempre será maior que a oferta, ao contrário da presente condição do mercado de trabalho. Haverá uma exemplificação das palavras de Richard Cobden segundo as quais quando dois trabalhadores buscam um empregador, os salários descem, mas quando dois empregadores buscam um trabalhador, os salários sobem. O trabalho estará então numa posição de ditar seus salários e, assim, garantir sua remuneração natural, seu produto completo. Dessa forma, o mesmo golpe que baixa os juros faz com que os salários subam. Mas isso não é tudo. Os lucros também cairão. Pois os mercadores, em vez de comprarem a altos preços no crédito, pegarão empréstimos dos bancos a taxas menores que um por cento, comprarão os produtos à vista e reduzirão os preços para o consumidor. O mesmo valerá para os aluguéis de imóveis. Pois ninguém que tenha capital a uma taxa de um por cento — com o qual pode construir sua própria casa — consentirá em pagar a um senhorio um valor mais alto. É isso que dizem Proudhon e Warren quanto aos resultados da simples abolição do monopólio da moeda.

Em segundo lugar em importância vem o monopólio da terra, cujos efeitos maléficos do qual são percebidos principalmente em países agrários como a Irlanda. Esse monopólio consiste na proteção do governo de títulos de terra que não se baseiam na ocupação pessoal e no cultivo. Era óbvio para Warren e Proudhon que, assim que as propriedades individuais passassem a ser protegidas apenas com base na ocupação pessoal e no cultivo da terra, a renda advinda das desapareceria e assim a usura seria privada de mais um de seus sustentáculos. Os seguidores atuais de Warren e Proudhon estão dispostos a modificar seu argumento a ponto de admitir que a pequena fração da renda das terras — que se baseia não no monopólio mas na superioridade da localização ou da qualidade do solo — continuará a existir por um tempo e talvez para sempre, embora tendendo constantemente ao mínimo em condições de liberdade. Porém, a desigualdade dos solos que faz com que exista a renda econômica da terra, assim como a desigualdade de habilidades humanas que dá origem à renda econômica advinda delas, não é causa para sério alarme mesmo para o mais empedernido oponente da usura, já que sua natureza não é a do germe do qual se podem surgir outras e mais graves desigualdades, mas é similar à de um galho apodrecido de uma árvore que deve finalmente secar e cair.

Em terceiro lugar, o monopólio das tarifas, que consiste em incentivar a produção a altos preços e sob condições desfavoráveis com a cobrança de impostos sobre aqueles que produzem a preços baixos e sob condições favoráveis. O mal a qual esse monopólio dá origem pode ser mais apropriadamente chamado de desusura em vez de usura, porque ele compele os trabalhadores a pagar não exatamente pelo uso do capital, mas pelo uso indevido do capital. A abolição desse monopólio resultaria numa grande redução de preços de todos os artigos taxados e essa economia dos consumidores seria um outro passo rumo à garantia do trabalhador de sua remuneração natural, seu produto completo. Proudhon admitiu, contudo, que abolir esse monopólio antes de abolir o da moeda seria uma política cruel e desastrosa. Primeiro, por conta da escassez de dinheiro, criada pelo monopólio de moeda, que seria intensificada pelo fluxo de dinheiro para fora do país com o excesso de importações em relação a exportações. E, segundo, porque aquela fração dos trabalhadores do país que agora estão empregados nas indústrias protegidas ficariam desamparados, podendo passar fome sem os benefícios criados pela demanda insaciável por trabalho criada por um sistema monetário competitivo. Proudhon insistia que o livre comércio monetário doméstico, que tornaria o dinheiro e o trabalho abundantes, é condição anterior ao livre comércio de bens com países estrangeiros.

Em quarto lugar, o monopólio das patentes, que consiste em proteger os inventores e os autores da competição por um período longo o suficiente que os permita extorquir das pessoas um preço muito mais alto que o valor de seu trabalho — em outras palavras, dar a certas pessoas o direito de propriedade por vários anos sobre as leis e os fatos da natureza e o poder de tributar os outros pelo dessas riquezas naturais, que deveriam ser gratuitas para todos. A abolição desse monopólio instigaria um medo saudável da competição em seus beneficiários, que faria com que ficassem satisfeitos com o pagamento por seus serviços igual ao que os outros trabalhadores conseguem pelos seus. Para isso, colocariam seus produtos e serviços no mercado desde o princípio a preços tão baixos que suas linhas de negócio não seriam mais atraentes para a competição quanto quaisquer outras.
O desenvolvimento do programa econômico que consiste na destruição desses monopólios e na substituição deles pela livre concorrência levou seus autores à percepção do fato de que todos os seus pensamentos se baseavam num princípio fundamental: a liberdade do indivíduo, seu direito soberano sobre si mesmo, sobre seus produtos e suas relações, e seu direito de rebelião contra as ordens de uma autoridade externa. Assim como a ideia de tirar o capital dos indivíduos para dá-lo para o governo levou Marx a um caminho que termina ao transformar o governo em tudo e o indivíduo em nada, a ideia de tirar o capital dos monopólios protegidos pelo governo e colocá-los ao alcance de todos os indivíduos colocou Warren e Proudhon no caminho que termina na transformação do indivíduo em tudo e do governo nada. Se o indivíduo tem o direito de governar a si mesmo, toda autoridade externa é tirânica. Daí a necessidade de se abolir o estado. Essa era a conclusão lógica que Warren e Proudhon foram forçados a aceitar e que se tornou o ponto fundamental de suas filosofias políticas. É a doutrina que Proudhon chamou de anarquismo — palavra derivada do grego, que significa não necessariamente a ausência de ordem, como se supõe, mas uma ausência de domínio. Os anarquistas são simplesmente democratas jeffersonianos consistentes. Eles acreditam que “o melhor governo é aquele que menos governa” e que o que menos governa é nenhum governo. Até mesmo a simples função policial de proteção da pessoa e da propriedade eles negam aos governos sustentados por tributos coercitivos. Eles veem a proteção como algo a ser provido, tanto quanto necessária, por associações voluntárias e por cooperações de auto-defesa ou como mercadoria para ser comprada, como qualquer outra, daqueles que desejam oferecê-la no mercado pelo menor preço. Na visão deles, é em si mesma uma invasão da soberania do indivíduo compeli-lo a pagar ou a sujeitar-se a uma proteção contra invasão que ele não deseje. E eles ainda argumentam que a proteção se tornará pouco relevante no mercado após a pobreza e o crime decorrentes dela terem desaparecido através da realização de seu programa econômico. A taxação compulsória é, para eles, o princípio que possibilita todos os monopólios e a resistência passiva — porém organizada, no momento propício — aos coletores de impostos é vista como um dos métodos mais efetivos para chegar a seus objetivos.

A atitude de Proudhon e Warren nas questões apresentadas anteriormente é a chave para suas atitudes em relação a todas as questões de natureza política ou social. Em religião, são pessoalmente ateus, pois veem a autoridade divina e a moralidade religiosa como grandes pretextos utilizados pelas classes privilegiados para o exercício da autoridade humana. “Se Deus existe”, disse Proudhon, “ele é inimigo do homem”. Em contraste ao famoso epigrama de Voltaire “Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo”, o grande niilista russo Mikhail Bakunin afirmou antiteticamente: “Se Deus existisse, seria necessário aboli-lo”. Porém, embora não acreditem em Deus e apesar de considerarem a hierarquia divina como contraditória à anarquia, os anarquistas acreditam firmemente na liberdade de crença. Qualquer negação da liberdade religiosa é combatida por eles. Sustentando assim o direito de todo indivíduo de ser ou de escolher seu pastor, eles igualmente defendiam o direito de ser ou escolher seu médico. Nenhum monopólio na teologia, nenhum monopólio na medicina. Competição em todos os lugares e sempre; conselhos espirituais e conselhos médicos devem subsistir ou desaparecer por seus próprios méritos. E não apenas na medicina, mas na higiene, este princípio da liberdade deve ser seguido. O indivíduo pode decidir por ele mesmo não só o que fazer para estar bem, mas o que fazer para se manter bem. Nenhum poder externo deve ditar o que ele deve comer, beber, vestir ou fazer.

O anarquismo também não oferece qualquer código moral para ser imposto sobre o indivíduo. “Cuide da sua vida” é a única lei moral. A interferência nos assuntos alheios é um crime — o único crime — e, como tal, deve sofrer resistência. Assim, os anarquistas consideram as tentativas de supressão arbitrária dos vícios humanos como crimes em si mesmas. Eles acreditam que liberdade e o bem estar social resultante dela são a cura correta para todos os vícios. Porém, reconhecem o direito do alcoólatra, do jogador, do libertino e da prostituta de viverem suas vidas até que eles livremente escolham abandoná-las.

Quanto ao sustento e à criação das crianças, os anarquistas não instituiriam nem os berçários comunitários defendidos pelos socialistas de estado, nem manteriam o sistema escolar comunitário que ora existe. Os mentores e professores, assim como os médicos e pastores, devem ser selecionados voluntariamente, e seus serviços devem ser pagos por aqueles que os utilizam. Os direitos dos pais não devem ser suprimidos e as responsabilidades dos pais não devem ser impostas sobre os outros.
Mesmo na delicada questão das relações entre os sexos, os anarquistas não se furtam à aplicação consistente de seu princípio. Eles reconhecem e defendem o direito de qualquer homem e mulher — ou de quaisquer homens e mulheres — de se amarem por quanto tempo suportarem, quiserem ou puderem. Para os anarquistas, o legislar sobre o casamento ou o divórcio é igualmente absurdo. Eles aguardam o dia em que todo indivíduo, homem ou mulher, seja auto-suficiente e tenha seu lar independente, seja uma casa própria ou um quarto numa casa com outras pessoas; aguardam o dia em que as relações amorosas entre indivíduos independentes sejam tão variadas quanto são as inclinações e atrações individuais; e em que as crianças nascidas dessas relações pertençam exclusivamente às mães até terem idade suficiente para serem donas de si.
São essas as características principais do ideal social anarquista. Há uma grande diferença de opiniões entre aqueles que o defendem quanto ao melhor método para alcançá-lo. Restrições de tempo proíbem o tratamento mais prolongado deste assunto. Eu simplesmente chamarei atenção para o fato de que o ideal dos comunistas que falsamente se dizem anarquistas é absolutamente inconsistente, pois se trata de uma defesa de um regime arquista tão despótico quanto o ideal dos socialistas de estado. O anarquismo é uma ideia que pode ser tão pouco avançada pelo Príncipe Kropotkin (8) quanto retardada pelas vassouras das senhoras Partingtons (9) que os sentenciam à prisão; um ideal que os mártires de Chicago fizeram muito mais para ajudar, com suas gloriosas mortes na forca para a causa comum do socialismo, que por suas infelizes defesas durante suas vidas, em nome do Anarquismo, da utilização da força como agente revolucionário e da autoridade como garantia da nova ordem social. Os anarquistas acreditam na liberdade tanto como fim quanto como meio e são hostis a tudo que seja contrário isso.

Eu não tentaria resumir ainda mais esta já breve exposição do socialismo do ponto de vista anarquista se isso já não tivesse sido feito por um brilhante jornalista e historiador francês, Ernest Lesigne, na forma de uma série de nítidas antíteses; espero que sua leitura na conclusão desta exposição aprofunde a impressão que foi meu objetivo passar.
Existem dois socialismos.
Um é comunista, o outro solidarista.
Um é ditatorial, o outro libertário.
Um é metafísico, o outro positivo.
Um é dogmático, o outro científico.
Um é emocional, o outro reflexivo.
Um é destrutivo, o outro construtivo.
Ambos estão em busca do maior bem estar possível para todos.
Um pretende estabelecer a felicidade para todos, o outro possibilitar que cada um seja feliz à sua maneira.
O primeiro considera o estado como uma sociedade sui generis, de essência especial, produto de um tipo de direito divino situado fora e acima de toda a sociedade, com direitos especiais e capaz de exigir obediências especiais; o segundo considera o estado como uma associação como qualquer outra, normalmente gerenciada de forma pior que as outras.
O primeiro proclama a soberania do estado, o segundo não reconhece nenhum tipo de soberano.
Um deseja que todos os monopólios sejam mantidos pelo Estado; o outro deseja a abolição de todos os monopólios.
Um deseja que a classe governada se torne a classe governante; o outro deseja o desaparecimento das classes.
Ambos declaram que o estado de coisas existente não pode durar.
O primeiro considera revoluções como agentes indispensáveis de evoluções; o segundo ensina que a repressão sozinha transforma evoluções em revoluções.
O primeiro tem fé num cataclismo.
O segundo sabe que o progresso social resultará da interação livre dos esforços individuais.
Ambos entendem que nós estamos entrando num período histórico.
Um deseja que não existisse ninguém senão proletários.
O outro deseja que não houvessem mais proletários.
O primeiro deseja tirar tudo de todos.
O segundo deseja deixar que cada um tenha posse do que é seu.
Um deseja expropriar a todos.
Outro deseja que todos sejam proprietários.
O primeiro diz: “Faça como deseja o governo.”
O segundo diz: “Faça como você mesmo deseja.”
O primeiro ameaça com o despotismo.
O último promete a liberdade.
O primeiro sujeita o cidadão ao estado.
O último torna o estado o empregado do cidadão.
Um proclama que as dores do trabalho serão necessárias para o nascimento de um novo mundo.
O outro declara que o real progresso não causará sofrimento para ninguém.
O primeiro acredita numa guerra social.
O outro acredita somente no funcionamento da paz.
Um aspira comandar, regular, legislar.
O outro deseja conseguir o mínimo de comando, de regulação, de legislação.
Um seria seguido pelas mais atrozes reações.
O outro abre ilimitados horizontes ao progresso.
O primeiro fracassará; o outro terá sucesso.
Ambos desejam a igualdade.
Um abaixando as cabeças que estão altas demais.
O outro levantando as cabeças que estão muito baixas.
Um vê a igualdade sob um jugo comum.
O outro assegurará a igualdade em completa liberdade.
Um é intolerante, o outro tolerante.
Um assusta, o outro tranquiliza.
O primeiro deseja instruir a todos.
O segundo deseja que todos sejam capazes de se instruir.
O primeiro deseja sustentar a todos.
O segundo deseja que todos sejam capazes de se sustentar.
Um diz:
A terra para o Estado.
A mina para o Estado.
A ferramenta para o Estado.
O produto para o Estado.
O outro diz:
A terra para o fazendeiro.
A mina para o mineiro.
A ferramenta para o trabalhador.
O produto para o produtor.
Há somente esses dois socialismos.
Um é a infância do socialismo; o outro é sua idade adulta.
Um já está no passado; o outro é o futuro.
Um dará lugar ao outro.


Hoje cada um de nós precisa escolher um ou outro desses dois socialismos ou então confessar que não é socialista.”
(1) -  Refere-se ao movimento de diversos grupos trabalhistas do século 19 em prol da jornada de trabalho de oito horas por dia.

(2) - Os Cavaleiros do Trabalho, em inglês Knights of Labor, foram uma das maiores organizações de trabalhadores do século 19 nos Estados Unidos.

(3) - Antigo partido dos Estados Unidos que defendia o fim do padrão-ouro e uma moeda inflacionária de papel sem lastro, chamada “greenback”. O partido deixou de existir oficialmente em 1889.

(4) - Evidentemente, o autor aqui ataca outros norte-americanos que viam o socialismo como ideia tipicamente europeia e, portanto, inaplicável aos EUA. 

(5) - Refere-se à Batalha de Bunker Hill, durante o Cerco de Boston, uma das primeiras da Revolução Americana. O Warren a que o texto se refere é Joseph Warren, um dos generais do exército americano que foi morto na batalha. 

(6) - Em inglês, o nome do Partido Socialista Trabalhista é Socialist Labor Party, fundado em 1876 com o nome Workingmen’s Party (Partido dos Trabalhadores). O partido ainda existe nos EUA. As agremiações inspiradas por Edward Bellamy foram os Clubes Nacionalistas (Nationalist Clubs), inspirados por seu livro Looking Backward, que faziam campanha pela nacionalização da indústria. Os cristãos socialistas só vieram se organizar mais tarde em torno da Sociedade de Cristãos Socialistas (Society of Christian Socialists).

(7) -  Tucker se refere aqui à Escola de Manchester de liberais, liderados por Richard Cobden e John Bright. Foram ativistas extremamente influentes no Reino Unido. 

(8) - Pyotr Kropotkin, um dos principais expoentes do anarco-comunismo. Ficou conhecido como príncipe embora tenha rejeitado seu título de nobreza já na adolescência. 

(9) - Referência à anedota da mulher que tentou tirar as águas do Oceano Atlântico de dentro de sua casa com uma vassoura. 






quarta-feira, 16 de março de 2016

Perspectivas Individualistas (1957) - por Emile Armand






(Tradução portuguesa do original aqui: https://www.marxists.org/archive/armand/1957/individualism.htm)

Os anarco- individualistas não se apresentam como proletários, simplesmente absorvidos na procura pelo aperfeiçoamento material, ligada a uma classe determinada a transformar o mundo e a substituir a actual sociedade por uma nova. Eles localizam-se no presente; possuem um desdém para orientar as gerações vindouras para uma forma de sociedade alegadamente destinada para assegurarem a sua felicidade, pela simples razão que de um ponto de vista individualista, a felicidade é uma conquista, uma procura interna individual.

Mesmo se eu acredita-se na eficácia de uma transformação social universal, de acordo com um sistema bem definido, sem direcção, sanção, ou obrigação, não vejo com que direito eu podia persuadir os outros de que esta era melhor. Por exemplo, eu quero viver numa sociedade da qual os últimos vestigios de autoridade tivessem desaparecido, mas, para ser honesto, não tenho a certeza que as "massas", para chamá-las pelo que são, sejam capazes de se dispensarem da autoridade. Eu quero viver numa sociedade em que os membros pensem por e para si próprios, mas a grande atracção que é exercida nas massas pela publicidade, imprensa, leitura fútil e pelas distracções subsidiadas pelo Estado fazem-me questionar se os Homens alguma vez serão capazes de reflectir e julgar com uma mente independente. Podem em resposta me dizerem que a solução da questão social irá transformar todo o homem num sábio. Esta é uma afirmação desnecessária, visto haver vários sábios sob todos os regimes. Visto eu não saber qual a forma de sociedade que mais provavelmente criará harmonia interna e equilíbrio na união social, refreio-me de teorizar.

Quando se fala de "associação voluntária" (adesão voluntária para um plano, um projecto, uma acção), isto implica a possibilidade da recusa de se associar, aderir ou agir. Imaginemos que o planeta se tivesse submetido a um sistema social ou económico único; como eu poderia existir se tal sistema não me satisfaz? Apenas me permanece um recurso: integrar-me ou perecer. É defendido que, a "questão social" foi resolvida, que já não existe um lugar para o inconformismo, a teimosia, etc... mas é exactamente quando uma questão foi resolvida é que é importante impor novas questões ou regressar a uma velha solução, apenas para evitar uma estagnação.

Se existe uma "Liberdade" localizada sob e acima de todos os indivíduos, esta é certamente nada mais do que a livre expressão das suas mentes, a manifestação e difusão das suas opiniões. A existência de uma organização social fundada numa unidade ideológica singular interfere contra toda a liberdade de expressão e de todo o pensamento ideologicamente oposto. Como poderia eu ser capaz de opôr-me ao sistema dominante, propondo outro, apoiando um retorno a um sistema anterior, se isto significa tornar conhecido o meu ponto-de-vista ou de as minhas críticas publicadas chegarem às mãos dos agentes do regime no poder? Este regime deve então aceitar ser comparado com outras soluções sociais superiores à sua, ou, apesar de terminar em "ista", reconhecer que não é melhor do que qualquer outro tipo de regime. Ou permitirá oposição, secessão, cisma, faccionalismo, competição, ou nada o distinguirá de uma ditadura. Este regime "ista" iria inegavelmente argumentar de que foi investido com o poder pelas massas, de que não exercita o seu poder ou controlo excepto pela representação de assembleias ou congressos; mas enquanto não permitisse aos intransigentes e refractários para exprimirem as razões da suas atitudes e do seu consequente comportamento, seria apenas um sistema totalitário. Os benefícios materiais na qual uma ditadura se orgulha não têm qualquer importância. Independentemente de seja qual for a escassez ou a abundância, uma ditadura é sempre uma ditadura.

É me perguntado porque eu chamo o meu individualismo de "anarco-individualismo"? Simplesmente porque o Estado concretiza a melhor forma organizada de resistência à afirmação do indivíduo. O que é o Estado? Um organismo que se proclama a si próprio como o representante do corpo social, para o qual o poder é alegadamente delegado, sendo este poder a expressão da vontade de um autocrata ou da soberania popular. Este poder não tem razão para existir senão para manter a estrutura social existente. Mas as aspirações individuais são incapazes de chegarem a um acordo com a existência do Estado, a personificação da Sociedade, pois, como Palante diz: "Toda a sociedade é e será exploradora, usurpadora, dominante e tirana. Isto não é por acidente mas por essência." No entanto o individualista não seria nem explorado, usurpado, dominado, tiranizado ou despojado da sua soberania. Por outro lado, a Sociedade é capaz de exercer limites sob o indivíduo apenas graças ao apoio do Estado, o administrador e dirigente de todos os assuntos da Sociedade. Independentemente para onde ele virar, o indivíduo encontra o Estado ou os seus agentes, que não se preocupam no mínimo se as regras que eles impõem estão de acordo ou não com a diversidade de temperamentos dos sujeitos sob os quais eles praticam administração. Desde as suas aspirações às suas reivindicações, os individualistas da nossa Escola decidiram eliminar o Estado. É por causa disto que eles se proclamam como "anarquistas".

Mas nos enganamos a nós próprios se imaginamos que os individualistas da nossa escola são anarquistas (AN-ARQUIA, etimologicamente, a negação do Estado pelo Homem, independentemente de outros assuntos) apenas em relação ao Estado - como as democracias ocidentais ou os regimes totalitários. Este ponto não pode deixar de ser sublinhado. Contra tudo o que constitui poder, isto é, poder económico tal como poder político, estético tal como intelectual, científico tal como ético, os individualistas rebelam e formam frentes, sozinhos ou em associação voluntária. Daí, um grupo ou uma federação pode exercer um poder tão absoluto como qualquer Estado, se aceita num determinado campo, todas as possibilidades de actividade e realização.
O único corpo social no qual é possível para um indivíduo evoluir e desenvolver é aquele que permite uma pluralidade de experiências e realizações, que se opõe a todos os grupos com base numa exclusividade ideológica, e que - por mais bem intencionados sejam - ameaçam a integridade de um indivíduo a partir do momento em que esta exclusividade pretende-se expandir aos que recusam aderir a tal agrupamento. Para chamar a isto anti-estatismo seria nada mais do que criar uma máscara para o apetite de liderar uma manada de ovelhas humanas.

Já disse acima que é preciso insistir neste ponto. Por exemplo, o anarco-comunista nega, rejeita e expulsa o Estado da sua ideologia; mas ressuscita-o no momento em que substitui a organização social pelo julgamento pessoal. Se o anarco-individualismo logo tem em comum com o anarco-comunista a negação política do Estado, do "Arconte", apenas aponta um ponto de divergência. O anarco-comunista mergulha-se a si próprio no planalto da economia, no terreno do conflicto de classes, unido como o sindicalismo, etc. (isto é do seu direito), mas o anarco-individualista localiza-se a si próprio no planalto do psicológico, e na resistência face ao totalitarismo social, que é algo completamente diferente. (Naturalmente, o anarco-individualismo segue vários caminhos de actividade e educação: filosofia, literatura, ética, etc., mas apenas quis aprofundar aqui apenas algumas pontos da nossa atitude perante o ambiente social).

Não nego que isto não é nada de novo, mas é lembrar uma posição da qual é bom relembrar de vez em quando.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Uma introdução ao pensamento de Pierre-Joseph Proudhon







A Liberdade é a mãe da Ordem - se alguém estudou brevemente a história do pensamento anarquista, é provável que tenha encontrado esta afirmação, sem saber as suas origens.

Apesar do discurso sobre a possibilidade da existência de uma sociedade sem Estado estar presente milhares de anos atrás, entre filósofos gregos (encarada de uma forma positiva por Zenão de Cítio e os estoicos e encarada de uma forma negativa por Aristóteles e Platão), filósofos chineses (Lao-Tsé e Chuang-Tzu) e o aristocrata renascentista  Étienne de La Boétie, foi Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) a primeira pessoa na história a usar o termo Anarquismo para identificar a sua filosofia política. Apesar de anteriormente ao seu tempo o termo "anarquia" ser usado como sinónimo de desordem e de caos social ou como um sinónimo de um regime democrático onde o poder das "massas" se sobrepõem ao das "elites naturais" (de acordo com os platónicos e aristotélicos), Proudhon argumentava que eram os Estados tirânicos, que trabalhando a favor das classes possidentes e de capitalistas, eram os que verdadeiramente causavam o caos e a desordem. Para remediar isto, Proudhon defendia que a abolição do Estado levaria a uma maior liberdade e à igualdade de condições entre seres humanos.

Além de serem considerados os primeiros anarquistas, Proudhon e os seus seguidores se encontrariam entre os primeiros doutrinários socialistas, juntamente com Robert Owen, Saint-Simon, Fourier, Marx e Engels, etc. Apesar de todos estes estarem em concordância na sua igual adesão à teoria do valor trabalho, as soluções que propunham para o resolvimento da chamada "questão social" eram diferentes. Enquanto os seguidores de Marx e Engels defendiam uma colectivização dos meios de produção, Proudhon defendia a implementação de um sistema económico  misto titulado de Mutualismo, composto por trabalhadores por conta própria, cooperativas e bancos mutualistas, que livremente se associavam num sistema semelhante a um livre-mercado, menos o lucro.

Numa letra datada de 1866, Karl Marx criticou ferozmente aquele que tivera uma grande influência no seu pensamento político-ideológico, além dos seus seguidores:

"...Os senhores de Paris têm as suas cabeças presas às mais fúteis das frases Proudhonianas Sobre o pretexto da liberdade, do anti-estatismo e do individualismo anti-autoritário, esta gente, que durante 16 anos sofreram sob o mais abdominável despotismo e ainda continuam a suportá-lo até hoje, defendem na realidade aquilo que é nada mais que uma comum sociedade burguesa com um lustro Proudhoniano! Prouhdon causou um enorme monte de confusão. O seu pseudo-criticismo e a sua pseudo-oposição aos utópicos (...) fascinou principalmente os jovens inteligentes estudantes, e depois os trabalhadores, especialmente aqueles de Paris, que, estando envolvidos na produção de artigos de luxo, estão fortemente  mas inconscientemente interessados na manutenção da velha ordem. Ignorantes, fúteis, pretenciosos, faladores - meros fanfarrões - eles estavam na iminência de estragar o inteiro assunto, pois os seus números no congresso eram muitos desproporcionais entre os membros da secção Francesa." (1)

Na sua famosa obra, O que é a propriedade? (1840), foi popularizada a famosa fase que identificaria Proudhon perante muitos até aos dias de hoje: a Propriedade é o Roubo!. Esta frase levaria à condenação de Prouhdon por parte dos defensores do liberalismo económico, pondo-o em pé de igualdade com o próprio Marx. No entanto, uma leitura mais aprofundada do trabalho deste demonstra que a visão deste pela propriedade era muito mais complexa:

"...Pensou a grande maioria dos leitores, e o público que o não leu mas admirou, que Proudhon condenava toda e qualquer propriedade. Não era, todavia, assim. A simples propriedade privada, a livre disposição do produto do trabalho e das economias individuais, é, na opinião de Proudhon, um fundamento da liberdade individual. Proudhon limita-se a condenar, quanto à propriedade, o direito que ela confere a certos proprietários de receberem, sem trabalho algum, determinado rendimento.

Não é em si a propriedade, mas o direito à sucessão, e a renda, o aluguer, o juro, o lucro, o ágio, os descontos, as comissões, os privilégios, os monopólios, que Proudhon condena veemente... A sua crítica à propriedade privada constitui o aspecto fundamental da sua crítica ao liberalismo: ele só aceita a propriedade que é fundamento da liberdade indivídual, dado que considera uma questão de justiça o facto de homem possuir as coisas em que incorpora o seu trabalho. Só é legítima, para Proudhon, a propriedade que concilia com o princípio da justiça, ou seja, com a liberdade." (2)

Na mesma obra, além da sua posição controversa contra a propriedade, Proudhon também atacou o comunismo como uma filosofia viável, igualmente repugnando-a:

"...Não devo dissimular que, fora da propriedade ou da comunidade, ninguém concebeu sociedade possível: este erro para sempre deplorável ocasionou a propriedade. Os inconvenientes da comunidade são de evidência tal que os críticos nunca tiveram que empregar muita eloquência para desanimar os homens. A irreparabilidade das suas injustiças, a violência que faz às simpatias e às repugnâncias, o jugo de ferro a que impõe à vontade, a tortura moral em que conserva a consciência, a atonia onde mergulha a sociedade, e enfim, para dizer tudo, a uniformidade beata e estúpida pela qual amarra a personalidade livre, activa, racional, insubmissa do homem, despertaram o bom senso geral e condenaram irrevogavelmente a comunidade." (3)

Depois de Karl Marx ter respondido à obra de Proudhon A Filosofia da Pobreza (1846) com uma obra alternadamente titulada A Pobreza da Filosofia (1847), a anterior amizade existente entre os 2 nunca mais seria recuperada.

Apesar de não ser difícil de perceber aquilo que  Proudhon não defendia e criticava, um criticismo credível deste é a de que apesar das suas boas qualidades como pensador, as suas teorias e soluções nunca foram bem desenvolvidas e até aos dias de hoje questiona-se sobre aquilo que verdadeiramente defendia - devido a isto, desde ideólogos anarquistas até ideólogos reaccionários reclamaram Proudhon como sendo um dos seus seus. (4)

Mikhail Bakunin (1814-1876), um seguidor e admirador de Proudhon que acabaria por se tornar muito mais famoso como um ideólogo do anarquismo, opinou sobre este anos depois do seu falecimento, comparando-o com Karl Marx :

"...Marx é um sério e profundo pensador de economia e possui uma tremenda vantagem sob Proudhon, por ser um materialista. Apesar de todos os seus esforços para se livrar a si próprio das tradições do idealismo clássico, Proudhon permaneceu um incorrigível idealista durante toda a sua vida, persuadido durante um tempo pela Bíblia e depois pelo Direito Romano (tal como lhe disse 2 meses antes de falecer) e sempre um metafísico até às pontas dos dedos. O seu grande azar foi que ele nunca estudou as ciências naturais e nunca adoptou os seus métodos. Ele possuia bons instintos e estes constantemente mostravam-lhe o caminho certo, mas enganado por hábitos maus ou idealistas do seu intelecto, ele caía constantemente outra vez e outra vez para os seus velhos erros. E daí Proudhon se tornou numa contradição permanente, um génio poderoso e um pensador revolucionário que lutou excessivamente contra as ilusões do idealismo mas que nunca teve o sucesso para as derrotar definitivamente (...) Como um pensador, Marx está no caminho certo (...) Por outro lado, Proudhon entendia e apreciava a ideia da liberdade melhor do que Marx. Quando não ocupado a inventar doutrinas e fantasias, Proudhon demonstrava o autêntico instinto do revolucionário; ele respeitava Satanás e proclamou a anarquia. É bem possível que Marx irá desenvolver um sistema de liberdade mais razoável do que o de Proudhon, mas falta-lhe o instinto de Proudhon. Como um alemão e um judeu, ele é um autoritário da cabeça aos pés." (5)

Apesar de Proudhon ser considerado o pai daquilo que chamamos de mutualismo, os mais conhecidos posteriores proponentes desta filosofia tal como os anarco-individualistas Benjamin Tucker (1854-1939) e Kevin Cason se afastariam dos escritos deste e usariam os seus ideais como simples parâmetros de orientação. Isto principalmente no caso de Kevin Carson (1963-), um auto-proclamado mutualista que parece sintetizar ideais de Proudhon e de Tucker com posições tomadas por seguidores  da Escola Austríaca de economia. Murray Rothbard (1926-1995), um economista desta Escola e considerado o principal teórico daquilo que é actualmente titulado de anarco-capitalismo - originária da fusão da teoria económica "Austríaca" com o anti-estatismo dos anarco-individualistas americanos do século XIX e dos inícios do século XX  - rejeitou a teoria do valor trabalho defendida até então pela larga maioria dos doutrinários do anarquismo. Devido ao fim da publicação do jornal Liberty de Benjamin Tucker em 1907 e devido à influência crescente de Rothbard, dos Austríacos e do "Libertarian Movement" na 2ª metade do século XX, o anterior movimento anarco-individualista norte-americano quase desapareceu e actualmente parece ter em grande parte "emigrado" para o mundo da Internet, localizando-se em sites como o Center for a Stateless Society.

Num artigo titulado Spooner-Tucker Doctrine: An Economist´s View, Rothbard  elogiou a doutrina a que deu o título do seu artigo, ao mesmo tempo que refutava as posições do lado anarco-individualsita/mutualista que considerava serem "más" segundo a sua perspectiva: isto nas questões sobre o provisionamento da lei, o funcionamento do sistema bancário,a teoria do valor do trabalho  e a justificação para a detenção de propriedade numa sociedade sem Estado. Sobre este último caso, Rothbard no entanto afirma o seguinte:

"...A minha segunda diferença política com Spooner-Tucker é na questão da terra, especificamente na questão dos direitos de propriedade nos títulos de terra (...) Enquanto eu fortemente discordo com esta doutrina, ela no entanto é um correctivo útil para aqueles libertários e economistas que se recusam a reconhecer o problema do monopólio de terras devido a concessões estatais a favoritos, e que assim falham a tratarem aquilo que é provavelmente o problema principal nos países sub-desenvolvidos de hoje. Não é suficiente defender os "direitos de propriedade privada"; deve existir uma adequada teoria de justiça dos direitos de propriedade, porque senão qualquer propriedade que um Estado decreta como "privada" deve agora ser defendida por Libertários, independentemente o quão injustas ou danosas sejam as consequências." (6)

Assim, tal como Proudhon e os seus posteriores seguidores, Rothbard defendia que para uma propriedade ser justificada, esta tinha que ser delimitada por uma adequada teoria de justiça, discordando apenas com os anarco-individualistas/mutualistas as limitações morais que estas detinham contra práticas como o arrendamento.

Nos últimos anos da sua vida, Proudhon adoptou uma visão mais conservadora perante o Estado, passando a defender um sistema federal descentralizado, em que cada comuna - constituída por cooperativas e por trabalhadores por conta própria - teria o direito de secessão para se separar desta mesma federação. Apesar disto, Proudhon também impunha a possibilidade de a maioria das comunidades dentro da federação puderem compelir a minoria. Isto parece contradizer a própria natureza da anarquia e parece que o princípio federativo de Proudhon aproximava-se mais da concepção liberal clássica de um Estado mínimo/minarquista.

Respondendo a um crítico perante esta sua nova posição, Proudhon respondeu da seguinte forma:

"...Eu já falei sobre a ANARQUIA, ou o governo de cada homem por si próprio - ou como os ingleses titulam, self-government - como sendo um exemplo do regime liberal. Visto a expressão "governo anárquico" constituir uma contradição de termos, o própria sistema parece-me impossível e a ideia absurda. No entanto, é apenas a linguagem que precisa de ser criticada." (7)

Esta sua mudança de posição em relação ao Estado e sua adopção de uma visão liberal clássica sobre a propriedade privada - declarando-a como um bastião da liberdade contra tirania estatal, em vez de um produto desta - transformou Proudhon numa figura altamente controversa em debates sobre o anarquismo. Mas apesar das suas contradições e falta de teorias consistentes, o "homem do paradoxo" ainda detém um importante papel na história do pensamento anarquista.

(1) - "The Geneva Congress of The International", in History of  The First International, de G.M. Stekloff (Capítulo VI, nota de referência Nº92) - https://www.marxists.org/archive/steklov/history-first-international/notes01.htm  (Tradução do autor deste artigo)

(2) - As Grandes Doutrinas Económicas, de Arthur Taylor (Publicações Europa-América, 6ª Edição, 1976 - pág.96)

(3) - "Carácteres da comunidade e da propriedade", in O que é a Propriedade?, de Pierre-Joseph Proudhon (2ª edição, Editorial Estampa, Lisboa, 1975, pág.225)

(4) - Como podemos ver no caso do Cercle Proudhon

(5) -  "The International at Its Zenith", im Karl Marx: The Story of his Life, de Franz Mehring (Capítulo XIII - https://www.marxists.org/archive/mehring/1918/marx/ch13.htm#s3) - (Tradução do autor deste artigo)

(6) - The Spooner-Tucker Doctrine, artigo de Murray Rothbard (Tradução para o português brasileiro aqui: https://c4ss.org/content/39610) - (Tradução para português europeu feita pelo autor do artigo)

(7) - "Pierre-Joseph Proudhon - The Philosopher of Poverty", in Demandig the Impossible, de Peter Marshall (pág.254 - PDF: https://libcom.org/files/Marshall%20-%20Demanding%20the%20Impossible%20-%20A%20History%20of%20Anarchism.pdf)



domingo, 6 de março de 2016

Os responsáveis pelo Portal Anarquista perdem uma boa oportunidade de debate

                                                                     


Link: https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2016/01/26/um-coloquio-cada-vez-menos-libertario-e-mais-libertariano/

Estou farto. "Fartíssimo" disto. Estou farto de ancaps e o outro lado (vamos chama-los de anarco-socialistas ou "anarquistas de esquerda") a insultarem-se e atirarem acusações que em grande parte não têm sentido nenhum - como o exemplo do autor do Portal Anarquista afirmar que os anarco-capitalistas e neo-liberais são a mesma coisa, quando na verdade, não são (também não é verdade que os ancaps são, in principle, contra o apoio mútuo e a actos de solidariedade...). Devido a isto, os membros do Portal Anarquista recusaram-se a participarem no Colóquio “PENSAMENTO LIBERTÁRIO III: PASSADO, PRESENTE E FUTURO”(1), do próximo dia 17 de Março, porque ficaram incomodados com o facto de membros do Partido Libertário Português (actualmente, a tentar se tornar num partido), que se revêm ideologicamente no libertarianismo norte-americano, segundo a tradição de Hayek, Ludwig Von Mises e Murray Rothbard.

"-TU É ESTATISTA!"
"-NÃO, TU É QUE ÉS!"
"-TU QUERES O MAO!"
"-E TU QUERES O PINOCHET!"


A verdade inconveniente é que ambas as ideologias dos 2 lados são conclusões lógicas de um "início" ligeiramente divergente. Tal como Thomas Hodgskin argumentava (Hodgskin era um socialista percursor de Karl Marx e Bakunin, enquanto ao mesmo tempo era defensor de uma economia de livre-mercado, tal como os ancaps e os "libertarians" de hoje) que o principal ideal por detrás dos ideais de David Ricardo era a de que nós colhemos o que semeamos, ou seja, que temos o direito àquilo que nós produzimos. É essa a principal justificação ética tanto para o capitalismo, como para o socialismo.

O grande problema é que estes 2 grupos (os ancaps e ansocs) têm opiniões diferentes sobre o que verdadeiramente constitui o "semear", e logo, o que é constitui uma legítima forma de "colher". Enquanto os 2 lados debaterem até não conseguirem chegarem a um acordo sobre aquilo que constitui verdadeiramente um legítimo  acto de "semear" e daí, um legítimo acto de "colher", ambos estarão para sempre presos nesta guerrinha de insultos e provocações, sobre quem defende a "exploração" e sobre quem não é anarquista.

Se um lado (os an-socs) acredita que o trabalhador tem o total direito ao valor daquilo produz, então é perfeitamente lógico considerares que qualquer patrão/capitalista/latifundiário é um explorador, e que deve ser "tratado". E faz sentido dizer que a agressão realizada contra o capitalista é justificável, porque é simplesmente agressão retaliatória - o capitalista foi quem nos agrediu inicialmente (ao retirar grande parte do valor do nosso trabalho), e por isso, a forma como reagimos é completamente justificável.

No entanto, se acreditas que o capitalista tem direito a fazer aquilo que quiser com a produção proveniente do trabalho daqueles que emprega, então é perfeitamente lógico veres como um acto de agressão injustificável aqueles casos em que trabalhadores ocupem as fábricas ou os terrenos, expulsem os donos e estabeleçam cooperativas de trabalhadores ou comunas.

Ambos os 2 lados discordam com aquilo que consideram ser um acto de agressão (no debate sobre se o capitalista explora os trabalhadores ou não), e por isso, acabam por discordarem também o que constitui legítima posse dos meios-de-produção.

E por favor, an-socs do Portal Anarquista - não me venham acusar de que não sei nada sobre o vosso lado. Eu sei a diferença entre Marx e Bakunin. Eu sei que Karl Marx queria a ditadura do proletariado, e que Bakunin era contra tal e ideia, e que ele esmagou a doutrina marxista nas obras Estatismo e Anarquia, e em Marxismo e a Liberdade. Eu sei que Proudhon criticou o comunismo e Marx, e que Bakunin seguiu os passos deste, e depois foi expulso da Internacional. O problema é que para o outro lado (os ancaps), a colectivização dos meios-de-produção e uma sociedade onde não é permitido um indivíduo montar um negócio soa a estatismo.

OK??? Ambos os 2 lados tem diferentes definições sobre o que verdadeiramente constitui um acto de agressão - e isto tudo devido às desavenças sobre a questão do que verdadeiramente constitui legítima posse dos meios-de-produção.

Tal como Roderick T. Long, escreveu no seu artigo Against Anarchist Apartheid (2), este "apartheid anarquista" é extremamente contra-productivo e não leva a lado nenhum. Sendo eu um anarquista de mercado que se revê tanto nos indivíduos do Grupo 1 como no Grupo 2 apresentados nesse artigo, eu sei muito bem do que estou a falar (daí a imagem que deixei neste artigo). No fim, todos nós queremos abolir o Estado - quanto a isso, somos todos camaradas. Estas "guerrinhas" não levam a lado nenhum. Debates sobre teoria são estimulantes e interessantes, e não devem ser postos de lado. Pelos menos, o Portal Anarquista, num comentário em baixo do seu artigo, deixou um convite para os ancaps para um possível futuro debate entre os 2 lados. Veremos se dará alguns frutos.

Devo concordar com os an-socs que o termo "anarco-capitalismo" é claramente uma contradição, mas isso não significa que aqueles que seguem a filosofia de Rothbard ou de David Friedman sejam "falsos anarquistas". Mas isso é uma conversa para outro artigo.

(1) - http://www.fcsh.unl.pt/media/eventos/coloquio-pensamento-libertario-iii-2014-passado-presente-e-futuro

(2) - https://aaeblog.com/2007/04/01/against-anarchist-apartheid/comment-page-1/#comments



terça-feira, 10 de novembro de 2015

Anarquismo - uma conclusão lógica do ateísmo



Nos dias de hoje, ser ateu é algo respeitado e aceite no Ocidente. Pode causar algum incómodo entre membros de família e amigos, mas muito raramente um grave conflito físico ou mental entre conhecidos. No entanto, a grande maioria do ateus (tal e qual como a grande maioria da humanidade) não reconhecem ou simplesmente ignoram o facto de que estes são os escravos de uma Igreja que é bem mais poderosa e mais eficiente do qualquer outra religião organizada que alguma vez existiu: o Estado.

Num episódio da mini-série francesa do ano de 2002 sobre a vida de Napoleão Bonaparte, o mesmo numa conversa com o Papa (antes de este simbolicamente aprovar da coroação de Napoleão como Imperador da França)  diz ao outro que "Deus" era simplesmente uma teoria, enquanto a religião era uma "certeza": no mundo controlado por aquilo que era assustadoramente real - uma classe sacerdotal que intimava as pessoas a lhe obedecerem como deviam viverem a sua vida, com a condenação de "irem para o Inferno" ou de irem para a prisão por não obedecerem "a lei" -, "Deus" era irrelevante, pois as pessoas podiam viver sem Deus, mas "não podiam viver sem religião." (1)

Tal e qual como Larken Rose argumenta através do livro «The Most Dangerous Superstition», a superstição que é a  fé na associação de criminosos chamada de Estado (na língua mãe do autor, o termo usado é «government») é uma igual superstição em comparação com a fé nas outras religiões existentes. Não há diferença: acreditar que todos os indivíduos que vivem sob o jugo da "República Portuguesa" vivem dentro do território controlado por esta associação devido ao chamado "contrato social", que nunca existiu e que não foi assinado por ninguém para aceitarem viver sob o jugo dessa mesma entidade, é tão supersticioso como acreditar num senhor imortal, que é barbudo, usa uma toga e que vive no céu, sentado num trono dourado, vivendo juntamente com as almas daqueles que sempre acreditaram "nele"(quando a existência deste suposto "reino" nunca foi provada).

A resposta do "estateu" (2) que considera que o meu argumento provocatório e que tem muita fé no Estado é a de que o Estado é real e não pode ser comparado ao não-existente "Deus" ou "deuses", e de que apesar de ser verdade que muitos tipos de dominação estatal são uma monstruosidade desumana, a existência do "Estado democrático" comprova que o Estado pode ser  uma identidade benéfica, em comparação ao vários males originários da religião (as Cruzadas, Jihads, e outras guerras religiosas, etc.).

No entanto, quando algum cristão acusa o ateísmo de ser culpado pelos milhões de mortos que resultaram do domínio dos regimes abertamente ateus da URSS ou da China maoista,o ateu irá responder - e bem - de que estes regimes não eram ateus porque os seus líderes - nestes casos, Estaline e Mao Zaedong - eram religiosamente adorados como "deuses na terra". No entanto, o mesmo não se aplica ao "Estado democrático"? Como? (Pretendo no futuro escrever sobre as origens religiosas do Estado)


O fenómeno "estateu" é irracional e é um exemplo de dissonância cognitiva. A maior existência de ateus do que anarquistas é o resultado de uma sociedade onde a grande maioria da população existente foi forçada a ir para campos de educação do Estado (as tais "eskolas públikas") durante a fase infantil e juvenil das suas vidas, sendo que a manutenção destes campos são financiados por impostos, que de acordo com a natureza do Estado, são provenientes do bens retirados a pessoas inocentes, sob a ameaça da violência. Uma parte desta população irão se tornar em ateus, mas devido à educação que receberam nestes campos de educação, onde lhes foi ensinada a obediência à "autoridade", ao Estado, "à nação", à "República", etc, anarquistas serão uma raridade entre estes.

Anarquismo é uma conclusão lógica de ateísmo consistente e de aceitar a realidade pelo o que ela é. A recusa da "autoridade" que se aplica ao divino também se deve aplicar à "autoridade real" das entidades geo-políticas: porque a "autoridade real" deixa de existir, quando todos nós deixarmos de ter fé nela.


(1)"We can do withouth God, but not withouth religion.(http://www.imdb.com/title/tt0253839/quotes)

(2) "estateu" - estrangeirismo originário da palavra inglesa "statheist" (http://www.urbandictionary.com/define.php?term=Statheist)