quinta-feira, 10 de março de 2016

Uma introdução ao pensamento de Pierre-Joseph Proudhon







A Liberdade é a mãe da Ordem - se alguém estudou brevemente a história do pensamento anarquista, é provável que tenha encontrado esta afirmação, sem saber as suas origens.

Apesar do discurso sobre a possibilidade da existência de uma sociedade sem Estado estar presente milhares de anos atrás, entre filósofos gregos (encarada de uma forma positiva por Zenão de Cítio e os estoicos e encarada de uma forma negativa por Aristóteles e Platão), filósofos chineses (Lao-Tsé e Chuang-Tzu) e o aristocrata renascentista  Étienne de La Boétie, foi Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) a primeira pessoa na história a usar o termo Anarquismo para identificar a sua filosofia política. Apesar de anteriormente ao seu tempo o termo "anarquia" ser usado como sinónimo de desordem e de caos social ou como um sinónimo de um regime democrático onde o poder das "massas" se sobrepõem ao das "elites naturais" (de acordo com os platónicos e aristotélicos), Proudhon argumentava que eram os Estados tirânicos, que trabalhando a favor das classes possidentes e de capitalistas, eram os que verdadeiramente causavam o caos e a desordem. Para remediar isto, Proudhon defendia que a abolição do Estado levaria a uma maior liberdade e à igualdade de condições entre seres humanos.

Além de serem considerados os primeiros anarquistas, Proudhon e os seus seguidores se encontrariam entre os primeiros doutrinários socialistas, juntamente com Robert Owen, Saint-Simon, Fourier, Marx e Engels, etc. Apesar de todos estes estarem em concordância na sua igual adesão à teoria do valor trabalho, as soluções que propunham para o resolvimento da chamada "questão social" eram diferentes. Enquanto os seguidores de Marx e Engels defendiam uma colectivização dos meios de produção, Proudhon defendia a implementação de um sistema económico  misto titulado de Mutualismo, composto por trabalhadores por conta própria, cooperativas e bancos mutualistas, que livremente se associavam num sistema semelhante a um livre-mercado, menos o lucro.

Numa letra datada de 1866, Karl Marx criticou ferozmente aquele que tivera uma grande influência no seu pensamento político-ideológico, além dos seus seguidores:

"...Os senhores de Paris têm as suas cabeças presas às mais fúteis das frases Proudhonianas Sobre o pretexto da liberdade, do anti-estatismo e do individualismo anti-autoritário, esta gente, que durante 16 anos sofreram sob o mais abdominável despotismo e ainda continuam a suportá-lo até hoje, defendem na realidade aquilo que é nada mais que uma comum sociedade burguesa com um lustro Proudhoniano! Prouhdon causou um enorme monte de confusão. O seu pseudo-criticismo e a sua pseudo-oposição aos utópicos (...) fascinou principalmente os jovens inteligentes estudantes, e depois os trabalhadores, especialmente aqueles de Paris, que, estando envolvidos na produção de artigos de luxo, estão fortemente  mas inconscientemente interessados na manutenção da velha ordem. Ignorantes, fúteis, pretenciosos, faladores - meros fanfarrões - eles estavam na iminência de estragar o inteiro assunto, pois os seus números no congresso eram muitos desproporcionais entre os membros da secção Francesa." (1)

Na sua famosa obra, O que é a propriedade? (1840), foi popularizada a famosa fase que identificaria Proudhon perante muitos até aos dias de hoje: a Propriedade é o Roubo!. Esta frase levaria à condenação de Prouhdon por parte dos defensores do liberalismo económico, pondo-o em pé de igualdade com o próprio Marx. No entanto, uma leitura mais aprofundada do trabalho deste demonstra que a visão deste pela propriedade era muito mais complexa:

"...Pensou a grande maioria dos leitores, e o público que o não leu mas admirou, que Proudhon condenava toda e qualquer propriedade. Não era, todavia, assim. A simples propriedade privada, a livre disposição do produto do trabalho e das economias individuais, é, na opinião de Proudhon, um fundamento da liberdade individual. Proudhon limita-se a condenar, quanto à propriedade, o direito que ela confere a certos proprietários de receberem, sem trabalho algum, determinado rendimento.

Não é em si a propriedade, mas o direito à sucessão, e a renda, o aluguer, o juro, o lucro, o ágio, os descontos, as comissões, os privilégios, os monopólios, que Proudhon condena veemente... A sua crítica à propriedade privada constitui o aspecto fundamental da sua crítica ao liberalismo: ele só aceita a propriedade que é fundamento da liberdade indivídual, dado que considera uma questão de justiça o facto de homem possuir as coisas em que incorpora o seu trabalho. Só é legítima, para Proudhon, a propriedade que concilia com o princípio da justiça, ou seja, com a liberdade." (2)

Na mesma obra, além da sua posição controversa contra a propriedade, Proudhon também atacou o comunismo como uma filosofia viável, igualmente repugnando-a:

"...Não devo dissimular que, fora da propriedade ou da comunidade, ninguém concebeu sociedade possível: este erro para sempre deplorável ocasionou a propriedade. Os inconvenientes da comunidade são de evidência tal que os críticos nunca tiveram que empregar muita eloquência para desanimar os homens. A irreparabilidade das suas injustiças, a violência que faz às simpatias e às repugnâncias, o jugo de ferro a que impõe à vontade, a tortura moral em que conserva a consciência, a atonia onde mergulha a sociedade, e enfim, para dizer tudo, a uniformidade beata e estúpida pela qual amarra a personalidade livre, activa, racional, insubmissa do homem, despertaram o bom senso geral e condenaram irrevogavelmente a comunidade." (3)

Depois de Karl Marx ter respondido à obra de Proudhon A Filosofia da Pobreza (1846) com uma obra alternadamente titulada A Pobreza da Filosofia (1847), a anterior amizade existente entre os 2 nunca mais seria recuperada.

Apesar de não ser difícil de perceber aquilo que  Proudhon não defendia e criticava, um criticismo credível deste é a de que apesar das suas boas qualidades como pensador, as suas teorias e soluções nunca foram bem desenvolvidas e até aos dias de hoje questiona-se sobre aquilo que verdadeiramente defendia - devido a isto, desde ideólogos anarquistas até ideólogos reaccionários reclamaram Proudhon como sendo um dos seus seus. (4)

Mikhail Bakunin (1814-1876), um seguidor e admirador de Proudhon que acabaria por se tornar muito mais famoso como um ideólogo do anarquismo, opinou sobre este anos depois do seu falecimento, comparando-o com Karl Marx :

"...Marx é um sério e profundo pensador de economia e possui uma tremenda vantagem sob Proudhon, por ser um materialista. Apesar de todos os seus esforços para se livrar a si próprio das tradições do idealismo clássico, Proudhon permaneceu um incorrigível idealista durante toda a sua vida, persuadido durante um tempo pela Bíblia e depois pelo Direito Romano (tal como lhe disse 2 meses antes de falecer) e sempre um metafísico até às pontas dos dedos. O seu grande azar foi que ele nunca estudou as ciências naturais e nunca adoptou os seus métodos. Ele possuia bons instintos e estes constantemente mostravam-lhe o caminho certo, mas enganado por hábitos maus ou idealistas do seu intelecto, ele caía constantemente outra vez e outra vez para os seus velhos erros. E daí Proudhon se tornou numa contradição permanente, um génio poderoso e um pensador revolucionário que lutou excessivamente contra as ilusões do idealismo mas que nunca teve o sucesso para as derrotar definitivamente (...) Como um pensador, Marx está no caminho certo (...) Por outro lado, Proudhon entendia e apreciava a ideia da liberdade melhor do que Marx. Quando não ocupado a inventar doutrinas e fantasias, Proudhon demonstrava o autêntico instinto do revolucionário; ele respeitava Satanás e proclamou a anarquia. É bem possível que Marx irá desenvolver um sistema de liberdade mais razoável do que o de Proudhon, mas falta-lhe o instinto de Proudhon. Como um alemão e um judeu, ele é um autoritário da cabeça aos pés." (5)

Apesar de Proudhon ser considerado o pai daquilo que chamamos de mutualismo, os mais conhecidos posteriores proponentes desta filosofia tal como os anarco-individualistas Benjamin Tucker (1854-1939) e Kevin Cason se afastariam dos escritos deste e usariam os seus ideais como simples parâmetros de orientação. Isto principalmente no caso de Kevin Carson (1963-), um auto-proclamado mutualista que parece sintetizar ideais de Proudhon e de Tucker com posições tomadas por seguidores  da Escola Austríaca de economia. Murray Rothbard (1926-1995), um economista desta Escola e considerado o principal teórico daquilo que é actualmente titulado de anarco-capitalismo - originária da fusão da teoria económica "Austríaca" com o anti-estatismo dos anarco-individualistas americanos do século XIX e dos inícios do século XX  - rejeitou a teoria do valor trabalho defendida até então pela larga maioria dos doutrinários do anarquismo. Devido ao fim da publicação do jornal Liberty de Benjamin Tucker em 1907 e devido à influência crescente de Rothbard, dos Austríacos e do "Libertarian Movement" na 2ª metade do século XX, o anterior movimento anarco-individualista norte-americano quase desapareceu e actualmente parece ter em grande parte "emigrado" para o mundo da Internet, localizando-se em sites como o Center for a Stateless Society.

Num artigo titulado Spooner-Tucker Doctrine: An Economist´s View, Rothbard  elogiou a doutrina a que deu o título do seu artigo, ao mesmo tempo que refutava as posições do lado anarco-individualsita/mutualista que considerava serem "más" segundo a sua perspectiva: isto nas questões sobre o provisionamento da lei, o funcionamento do sistema bancário,a teoria do valor do trabalho  e a justificação para a detenção de propriedade numa sociedade sem Estado. Sobre este último caso, Rothbard no entanto afirma o seguinte:

"...A minha segunda diferença política com Spooner-Tucker é na questão da terra, especificamente na questão dos direitos de propriedade nos títulos de terra (...) Enquanto eu fortemente discordo com esta doutrina, ela no entanto é um correctivo útil para aqueles libertários e economistas que se recusam a reconhecer o problema do monopólio de terras devido a concessões estatais a favoritos, e que assim falham a tratarem aquilo que é provavelmente o problema principal nos países sub-desenvolvidos de hoje. Não é suficiente defender os "direitos de propriedade privada"; deve existir uma adequada teoria de justiça dos direitos de propriedade, porque senão qualquer propriedade que um Estado decreta como "privada" deve agora ser defendida por Libertários, independentemente o quão injustas ou danosas sejam as consequências." (6)

Assim, tal como Proudhon e os seus posteriores seguidores, Rothbard defendia que para uma propriedade ser justificada, esta tinha que ser delimitada por uma adequada teoria de justiça, discordando apenas com os anarco-individualistas/mutualistas as limitações morais que estas detinham contra práticas como o arrendamento.

Nos últimos anos da sua vida, Proudhon adoptou uma visão mais conservadora perante o Estado, passando a defender um sistema federal descentralizado, em que cada comuna - constituída por cooperativas e por trabalhadores por conta própria - teria o direito de secessão para se separar desta mesma federação. Apesar disto, Proudhon também impunha a possibilidade de a maioria das comunidades dentro da federação puderem compelir a minoria. Isto parece contradizer a própria natureza da anarquia e parece que o princípio federativo de Proudhon aproximava-se mais da concepção liberal clássica de um Estado mínimo/minarquista.

Respondendo a um crítico perante esta sua nova posição, Proudhon respondeu da seguinte forma:

"...Eu já falei sobre a ANARQUIA, ou o governo de cada homem por si próprio - ou como os ingleses titulam, self-government - como sendo um exemplo do regime liberal. Visto a expressão "governo anárquico" constituir uma contradição de termos, o própria sistema parece-me impossível e a ideia absurda. No entanto, é apenas a linguagem que precisa de ser criticada." (7)

Esta sua mudança de posição em relação ao Estado e sua adopção de uma visão liberal clássica sobre a propriedade privada - declarando-a como um bastião da liberdade contra tirania estatal, em vez de um produto desta - transformou Proudhon numa figura altamente controversa em debates sobre o anarquismo. Mas apesar das suas contradições e falta de teorias consistentes, o "homem do paradoxo" ainda detém um importante papel na história do pensamento anarquista.

(1) - "The Geneva Congress of The International", in History of  The First International, de G.M. Stekloff (Capítulo VI, nota de referência Nº92) - https://www.marxists.org/archive/steklov/history-first-international/notes01.htm  (Tradução do autor deste artigo)

(2) - As Grandes Doutrinas Económicas, de Arthur Taylor (Publicações Europa-América, 6ª Edição, 1976 - pág.96)

(3) - "Carácteres da comunidade e da propriedade", in O que é a Propriedade?, de Pierre-Joseph Proudhon (2ª edição, Editorial Estampa, Lisboa, 1975, pág.225)

(4) - Como podemos ver no caso do Cercle Proudhon

(5) -  "The International at Its Zenith", im Karl Marx: The Story of his Life, de Franz Mehring (Capítulo XIII - https://www.marxists.org/archive/mehring/1918/marx/ch13.htm#s3) - (Tradução do autor deste artigo)

(6) - The Spooner-Tucker Doctrine, artigo de Murray Rothbard (Tradução para o português brasileiro aqui: https://c4ss.org/content/39610) - (Tradução para português europeu feita pelo autor do artigo)

(7) - "Pierre-Joseph Proudhon - The Philosopher of Poverty", in Demandig the Impossible, de Peter Marshall (pág.254 - PDF: https://libcom.org/files/Marshall%20-%20Demanding%20the%20Impossible%20-%20A%20History%20of%20Anarchism.pdf)



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